Textos


Bará do Mercado:
Senhor dos Caminhos, do Trabalho e da Fartura




Iosvaldyr C. Bittencourt Jr
Jornalista e Antropólogo

 

O Bará (orixá do Batuque), como ÈSÙ, são os “donos” das encruzilhadas, simbolizando o movimento e, por vezes, a mesma pessoa denomina certos barás ora como “Exú” (ÈSÙ), ora como “Bará”: Exú Lanã, Bará Lanã. De acordo com Norton Corrêa, “O aprontamento compreende a consagração do indivíduo no mínimo a seus orixás pessoais, o de cabeça e o do corpo, além do Bará, que sempre o acompanha. [...] corresponde ao estabelecimento oficial do pacto místico entre eindivíduo/orixá..”(CORRÊA, 2006, p. 95). De acordo com os religiosos,o Bará é o primeiro orixá na escala hierárquica, na qual Oxalá é o mais proeminente; Bará é, então, o primeiro a ser reverenciado, responsável pelos caminhos, dono das encruzilhadas e cruzeiros; tem como essência a circulação, o movimento, a troca e a comunicação. Consiste no princípio dinâmico da cosmovisão afro-religiosa. Por isso sua ligação com os mercados (MARQUES, p. 5).
Existem basicamente dois, o da Rua e o de dentro de Casa. Da Rua, os mais cultuados são o Lodê e o Lanã; e os de dentro de Casa, o Adague (o do “seco”) e o Jelú ou Ajelú/Agelú, da “praia” (CORRÊA, 2006, p. 180). Seus símbolos fundamentais são a chave, foice, corrente de ferro; e em suas oferendas oferecem-se moedas. As cores de referência são o vermelho, branco e amarelo, entretanto, como Exu no candomblé, suas cores caracterizam-se pelo vermelho e o preto.  Seus números são 3, 7 (ou múltiplos de sete).
Seguindo a classificação nativa, Corrêa (2006: 57) distingue três formas rituais dentro das religiões afro-brasileiras: “a Umbanda ‘pura’, a Linha-Cruzada e o Batuque ‘puro’, dedicando, a esse último, a sua obra. De um modo geral, argumenta ele, as pessoas sabem identificar as diferenças entre essas formas, sendo capazes de distinguir quando estão dentro e quando estão fora de cada uma das três. Acontece, no entanto, que “no discurso de alguém que se declare pertencer a uma delas podem aparecer expressões características das outras” (2006: 57). Assim, por exemplo, 

[...] se perguntarmos a um batuqueiro sobre Exú, é provável que ele diga que pertence à Linha-Cruzada. Entretanto, não só o nome dessa entidade aparece claramente em certos cânticos para o Bará (orixá do Batuque, ambos “donos” das encruzilhadas) como, às vezes, a mesma pessoa denomina certos Barás ora como ‘Exu’ ora como ‘Bará’: Exu Lanã, Bará Lanã (2006: 57). 

 Por meio do sincretismo religioso, Bará Lodê está associado a São Pedro; e o Bará Ajelú está associado a Santo Antônio. Os Barás mais conhecidos são os seguintes: Lodê, Jelú/Agelu Olodiá, Lanã, Adague, Abanadá, Bi, Bô, dentre outros. Os sentamentos, preferencialmente, são feito com pedras basálticas, de formado piramidal ou cônicas, e que deve se manter em posição ereta. A do Ajelú, de dentro de casa, considerado “do povo da praia”, é leitosa e translúcida. A do Lodê, da Rua, é piramidal e escura (CORRÊA, 2006, p. 183). 
REFERÊNCIAS
CORRÊA, Norton Corrêa. O Batuque do Rio Grande do Sul – antropologia de uma religião afro-rio-grandense. 2ª Edição, Porto Alegre: Editora Cultura e Arte Ltda., 2006.
MARQUES, Olavo Ramalho. O mercado sagrado: identidade e territorialidade entre afro-religiosos em Porto Alegre/RS. Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho: Cultura Popular, Patrimônio Imaterial e Cidadades. (Coord.) Luciana Carvalho (Iphan) e Sérgio Ivan Gil Braga (Ufam), 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, 01 e 04 de junho.Porto Seguro, Bahia, Brasil.
BASTIDE, Roger. As Américas Negras: as civilizações africanas no Novo Mundo. São Paulo: Edusp, 1974.  
______. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1983.
______. “O encontro entre deuses africanos e espíritos indígenas”. In: O sagrado selvagem e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 218-235.
Tambor


        Concebido coletivamente, nasceu dos debates entre artistas e griôs (guardiões da memória), acompanhados com expectativa pelo movimento negro. O tambor, por certo o único instrumento que tocado por um ou por muitos comunica a alma do todo, é amarelo porque Oxum assim o quis. Apresenta 12 figuras que repercutem a trajetória de um povo: dor, alegria, luta e perseverança.

Pedro Rubens Vargas
Técnico do projeto Monumenta/SMC
Graduado em História e Administração pela UFRGS
Pós-graduado em Museologia e Mestre em planejamento urbano





Pegada Africana 

         Com méritos de nova inclusão, a manifestação visível da “Pegada Africana” afirma a Praça da Alfândega como um dos lugares de existência do Museu de Percurso do Negro. Na praça, antigo Largo das Quitandeiras, raízes históricas adquirem nova visibilidade na forma de continente africano, concebida a partir de uma linha formada por sinuosos movimentos de matriz orgânica. Vinicius Vieira apresenta um desenho contemporâneo, modelado em aço, que envolve e ressignifica as pedras portuguesas do local, simbolizando a concretização de políticas públicas que resultaram da luta histórica por reconhecimento das culturas étnicas.

Miriam Chagas
Doutora em Antropologia - UFRGS




Bará do Mercado 

          O Mercado Público faz parte dos “caminhos invisíveis dos negros em Porto Alegre”, e sua importância deve-se a preservação e culto ao Orixá Bará Agelu Olodiá assentado no centro do prédio. O Bará é, dentro do panteão africano, a entidade que abre os bons caminhos, o guardião das casas e da cidade, e representa o trabalho e a fartura. Os religiosos de matriz africana e frequentadores acreditam na força do axé do orixá, que garantiu a sobrevivência e a prosperidade do mercado ao longo de seus 244 anos, dando fartura aos transeuntes que passam no local e fazem seus pedidos. Os africanistas e simpatizantes, ao fazerem seus pedidos de abertura dos caminhos na terra para a fartura de comida na mesa e de prosperidade na vida ao Bará, jogam sete moedas, como certos da sua proteção. Com o passar do tempo, somam-se os testemunhos de pessoas que agradecem pelo pedido alcançado ao Bará do Mercado Público. O Orixá Bará é reverenciado por toda a comunidade de matriz africana no Estado. 


Mãe Norinha de Oxalá 
     Fundadora e Presidente da Congregação 
em Defesa das Religiões Afro-Brasileiras - RS

          



Posfácio do livro Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre

        Este livro representa o reflexo de um sonho. O sonho de um grupo de pessoas da Comunidade Negra de poder instituir uma entidade que tivesse como propósito reescrever sua trajetória histórica, trazendo à luz a sua parte oculta, renovando a sua memória invisibilizada pela ausência das suas referências, dos territórios, dos símbolos e dos momentos de glória. Um pensamento que avançaria, a partir do ano de 1987, para a ideia básica da construção de um espaço que pudesse resgatar e visibilizar o seu extrato cultural, um acervo simbolizado na concepção tradicional de um Museu. A partir deste conceito inicial, o tempo impulsionaria a comunidade para uma importante caminhada na busca daquilo que muitos passaram a entender como ideal. Os encontros, as reuniões, os seminários, a Conferência do Povo Negro, os trabalhos científicos e os Cadernos surgidos no âmbito do processo das oficinas de auto-expressão, com diferentes segmentos do movimento social negro, foram determinantes para a criação de uma instituição que convencionamos chamar de Centro de Referência Afro-brasileiro, o Crab, e que teria o porte suficiente para concentrar toda a substância cultural da Comunidade Negra. O Crab, em que pese todo o trabalho investido na sua construção, carece ainda de uma materialização formal, mas isto não impede que ele possa cumprir os seus desígnios como criador ou apoiador de organismos que originalmente poderiam funcionar como extensões ou setores seus. Damos como exemplo, o Museu de Percurso, o Museu Comunitário e o Museu Itinerante. O Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre é um projeto inovador que se ampara na estrutura do Programa Monumenta, uma iniciativa do Ministério da Cultura, visando à requalificação de centros históricos e estímulo ao sentimento de pertença das comunidades com seu patrimônio cultural. Este Programa, que nas cidades onde atua é chamado de Projeto Monumenta, conta na composição de seus recursos econômicos com apoio do BID, investimentos do governo federal e das prefeituras onde o projeto é realizado. Em Porto Alegre é administrado pela Secretaria Municipal da Cultura, com a supervisão técnica do IPHAN, e parceira da UNESCO e da Caixa Econômica Federal.
      Sobretudo, é na responsabilidade administrativa do Monumenta e de um Conselho Gestor que agrega representantes do governo municipal e da sociedade civil, na inspiração criadora dos artistas plásticos, na excelência pedagógica dos professores, no acúmulo e eficiência dos técnicos e na energia das entidades da comunidade, coordenadas pelo Grupo de Trabalho Angola Janga, que esta grande obra se consolida. O livro, portanto, traz na essência dos textos informações específicas do projeto e ilustrando com muita competência as marcas, espaços e territórios que são referenciados como de identidade do Povo Negro. Descortina, em um passeio pelo centro da cidade, pontos simbólicos que, transferidos da obscuridade para o conhecimento geral da sociedade, evidenciam o restabelecimento da memória da etnia negra na formação do município por meio da cultura material. Nos marcos que fazem parte desta produção, a Comunidade Negra começa a enxergar a materialização da sua história e se sentir integrada ao contexto social e cultural da cidade que ela também ajudou a construir.




Nilo Alberto Feijó
Associação Satélite Prontidão





ÈSÙ OU ELÉGBÁRA – princípio de tudo, do poder de transformação e de comunicação, de distribuidor do Axé


Iosvaldyr C. Bittencourt Jr
Jornalista e Antropólogo






          A rigor, Èsù (Exu) não é um orixá, mas a personificação do princípio da transformação, participando de tudo que existe. O sopro de Olorum conferiu-lhe a vida e, assim, nasceu Exu Yangi, “rei  e pai de todos os Exus”. Exú é preexistente à ordem do mundo, múltiplo e indômito. Para Pierre Verger, Exu é um orixá ou um ebora de múltiplos e contraditórios aspectos, o que o torna difícil defini-lo de maneira coerente (VERGER, 1981, p. 76).
Èsù não somente está relacionado com os ancestrais femininos e masculinos, como também com as representações coletivas, mas sobretudo é um elemento constitutivo e, na realidade um elemento dinâmico, não só dos seres sobrenaturais, como também de tudo que existe. É um princípio que representa, transporta e participa forçosamente de tudo. Princípio dinãmico e de expansão de tudo o que existe, e sem ele todos os elementos do sistema e do seu devir ficariam imobilizados e, assim, a vida não se desenvolveria.
Cada um tem seu próprio ÈSÙ e seu próprio OLÓRUM em seu corpo ou cada ser humano tem seu ÈSÙ individual, cada cidade, cada casa (linhagem), cada entidade, cada coisa e cada ser tem seu próprio ÈSÙ. Se alguém não tivesse seu ÈSÙ em seu corpo, não poderia existir, não saberia que estava vivo, porque é compulsório que cada um tenha o seu ÈSÙ individual, uma vez que este deve desempenhar seu papel, de tal modo que ajude a pessoa para que ela adquira um bom nome e o poder de desenvolver-se.
Do ponto de vista histórico, Exu teria sido um dos companheiros de Odùduá, quando da sua chegada a Ifé, e chamava-se Èsù Obasin. Tornou-se, mais tarde, um dos assistentes de Orunmilá, que preside a advinhação pelo sisetma de Ifá. Segundo Epega, Exu tornou-se o rei de Kêto sob o nome de Èsù Alákétu.
OLÓRUM representa, portanto, o princípio da existência diferenciada em consequência de sua função de elemento dinâmico que o leva a propulsionar, a desenvolver, a viabilizar, a crescer, a transformar, a comunicar.
Essas forças percorrem tanto esse mundo (AIYÊ), quanto o além (ORUN). Entre esses dois mundos há uma relação contígua e dinâmica de restituição entre o AIYÊ e o ORUN. O equlíbrio cósmico, a expressão da vida no universo, dependem pois, do processo litúrgico das oferendas. Exu, em seu aspecto de Ojixé-ebó, o mensageiro transportador de oferendas, realiza a interação do AIYÊ com ORUN. Exu é o princípio que possibilita transportar e distribuir o axé.
Todo ser humano se constitui de seu EXU BARA (oba+ ara, o rei do corpo). Ele é o responsável pela circulação de substãncia no interior do corpo, nas suas cavidades, assim ele é representado, também, pela cor preta. EXU , enquanto ORIXÀ (ÒRISÀ) patrono do movimento, propicia ações que caracterizam o ciclo constante do renascimento. É ele que proporciona o nascimento de um indivíduo no AIYÊ, asim como a sua restituição, isto é, retorno de suas matérias-massa que irão constituir o egun ipori no ORUN. Ou seja, a matéria ancestral necessária aos ORIXÀ (ÒRISÀ) para que  proporcionem novos seres, que vivam no AIYÊ.
Particularizado na individualidade de cada orixá, Exu não se contrapõe ou contesta o signo da divindade; muito se infiltra nela, muito se situa na dualidade do bem poder e do malausência do poder, ou aquilo que ameaça o poder (LODY, Raul, 1995: p. 78).
Deste modo, a vida continua e se a vida continua é porque EXU garante a dinâmica do ciclo vital. Exú Elegbara, senhor da transformação. Exu provoca o conflito, para promover a síntese. Tudo o que se une, se multiplica, se separa, se transforma, tudo isso é Exu. Exu é a vida, com todas as suas contradições e sínteses. É considerado guardião dos templos, das casas, das cidades e das pessoas. É também ele que serve de intermediário entre os homens e os deuses. Por essa razão é que nada se faz sem ele e sem oferendas que lhe sejam feitas, antes de qualquer outro orixá, para neutralizar suas tendências a provocar mal-entendidos entre os seres humanos e em suas relações com os deuses e, até mesmo, dos deuses entre si.

Iba Elegba (Honra ao Senhor do Poder)

Iba Exu L’onã (Honra a Exu Senhor dos Caminhos)

Baba Onã (Pai do caminho)

Mo Juba Aiyê (Apresento os respeitos do mundo).

REFERÊNCIAS
AUGRAS, Monique. O Duplo e a Metamorfose – a identidade mítica em comunidade nagô. Petrópolis: Vozes, 1983.
LODY, Raul. O Povo de Santo – religião, história e cultura dos orixás, voduns, Inquices e Caboclos. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 1995.
LUZ, Marco Aurélio. Do Tronco Ao Opa Exim – memória e dinâmica da tradição africana-brasileira, Salvador:  Edições Secneb, 1993.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte – Pàde, Àsèsè e o Culto Égun na bahia. Petrópolis: Vozes, 1984.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás – deuses iourubás na África e no Novo Mundo. Corrupio/Círculo do Livro. Salvador, São Paulo: 1981.




Vitalizando a Simbologia Negra nos Espaços Públicos

Na história da humanidade, verifica-se que símbolos e signos são importantes para a formação e fortalecimento das culturas de cada lugar, tendo inclusive  voz própria. Se mostra importante e urgente a vitalização da simbologia artística negra na nossa cidade, assim como outros grupos étnicos já conquistaram, através de manifestações e construção de obras públicas em memória àqueles povos que colaboraram na formação da capital dos gaúchos. Atualmente no mundo contemporâneo, essa construção se dá, via de regra, por meio de expressões diversas, como poesias, performances, apresentações teatrais, danças, manifestações religiosas e, principalmente, com a representação simbólica de caráter etnico e heróico nas artes visuais. Reconhecendo a importância da pesquisa histórico-antropológica e da documentação proveniente da concretização de políticas públicas implementadas pelos órgãos governamentais e, além disso, pelo protagonismo da sociedade civil com a efetiva participação das entidades do movimento negro local, é visível que a representação simbólica negra beneficiará direta e indiretamente considerável parcela da população.  Com essa iniciativa implementada pelo Programa Monumenta / IPHAN, é com muita satisfação que  estamos presenciando, através do resgate da trajetória negra, a construção de um "Museu a céu aberto", mediante conquistas essencialmente coletivas, em territórios que tecem a rede do Percurso do Negro na nossa cidade. Com a construção coletiva do Tambor, a primeira obra pública do Museu,  e a inauguração da Pegada Africana , do artista Vinicius Vieira, consolidam-se os símbolos de representação negra em Porto Alegre, contribuindo para reescrever a verdadeira história do Brasil. Que se concretizará ainda mais com a execução das próximas obras públicas do Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre, de autoria dos artistas Leandro Machado e Pelópidas Thebano.   




Adriana Xaplin
Artista Visual - Mocambo








Capacitação de Jovens Negros

O Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre, em sua concepção, prevê a capacitação de jovens negros, indicados pelas entidades que faz~em parte do conselho gestor. Foram 18 jovens selecionados,inicialmente. Esses jovens tiveram aulas durante 06 meses de: História do Movimento Negro, Turismo Ètnico, Territórios Negros em Porto Alegre, e Cooperativismo. Durante os encontros, houveram momentos de integração com as outras fases do projeto, ou seja, os jovens acompanharam a construção do tambor, tiveram conversas com os griôs, com os artistas e com o antropológo. Isso sem dúvida foi um acréscimo na formação desses jovens, pois a concecpção pedagógica foi além da capacitação para a monitoria do Museu, pois foram jogadas as sementes (em solo muito fértil) da militância, com o  sentimento de pertencimento das histórias contadas. Quem lida com educação e jovens sabe que a pernamencia desses, em projetos e sempre oscilante, no Museu de Percurso tivemos a freqüencia e permanencia estavéis, quer seja pelos profissionais competentes que estiveram trabalhando com eles, quer seja referência positivas no história do negro em Porto Alegre que eles puderam saber e se apropriar, chegamos no nosso percurso com 15 jovens. E eu tive o privilégio de ter feito a coordenação pedagógica nesse percurso do museu.


Sandra Helena Figueiredo Maciel
Coordenadora de Políticas da Igualdade Racial do RS






Nego Lua:
Uma vida feita de caminhos afro-descendentes com muitas conquistas para o Povo Negro

O militante político negro José Alves Bitencourt foi um homem bastante indignado com a violência que os africanos e seus descendentes sofrem no Brasil. Exigia reparações históricas e sociais. Não gostava que as mulheres negras alisassem os cabelos, talvez por se aproximar ao padrão estético do opressor. Sem muitas opções de emprego, veio para Porto Alegre e foi trabalhar como arrumador ou estivador no porto. Na Capital, em virtude do trabalho braçal enfrentou a discriminação social e o preconceito racial, período em que começou a lhe despertar a consciência de classe e de raça. Contribuiu para fortalecer o Sindicato dos Estivadores de Porto Alegre, e nesta fase assumiu um discurso mais radical e agressivo, mas, com o passar do tempo e o amadurecimento foi adquirindo uma fala pausada, porém sem perder a contundência.
Foi neste momento que se transformaria no “Lua”. O apelido dado pela militância negra se deve ao formato arredondado de seu rosto parecendo-se com a lua. Gostava mesmo do “pretoguês” e, por isso em lugar de “Negro”, era “Nego”, o Nego Lua, uma forma de nomear afetiva e, ao mesmo tempo, afirmação da Negritude. Foi casado com Veneza Bitencourt, depois se separou e não deixou filhos, pois a vida política começava a absorvê-lo muito e segundo ele, a família era a sua luta.
Sempre atuou em nome do coletivo, seja na defesa dos interesses dos trabalhadores, das mulheres, dos homossexuais, dos sem-teto e, sobretudo, lutava pela igualdade racial e para que os negros conquistassem a cidadania plena na sociedade brasileira. Lua participava das muitas reuniões com os movimentos sociais que precederam a criação do PT, quando depois veio a ser um dos fundadores do PT (Partido dos Trabalhadores), no qual militou, inicialmente, na antiga Libelu (uma antiga tendencia interna do partido) . Atuou na zonal 113 e depois a zonal 159, no Campo da Tuca.
No PT ele sempre vestiu a camisa negra, pois votava sempre em candidatos negros. Só votava em candidatos não-negros quando não houvesse negros na disputa. Depois, ao final dos anos 80 aderiu à Força Socialista (outra tendencia do partido), junto com o jornalista e vereador Adroaldo Correa que defendia também a questão negra. Com a saída de Adroaldo, a tendência petista não deu mais ênfase às questões raciais, fazendo com que Lua se retirasse.
Uma das suas manias era a de usar bonés modernos de couro; era uma pessoa muito combativa, às vezes com posições muito radicais, porque acreditava muito nas causas que defendia, isto é, o poder para as classes populares contra o domínio da classe dominante, ou seja, em tudo ele via uma luta de classes. Uma das suas qualidades era a capacidade de articulação política, quando havia muitas posições divergentes. Era bastante solidário e fiel para com seus amigos.
Frequentava as reuniões da FRACAB nos altos do Mercado Público, o Bar do Naval, o bar dos negros, e na sala 113 fazia as reuniões do Movimento Negro em 1982. Homem de hábitos simples era frequentador do Mercado Público, abençoado pelo Bará do Mercado, embora se considerasse ateu, respeitava os cultos de matriz africana por questões ideológicas. Jamais usou terno e gravata, fazia questão de um bom feijão e carne de panela e como bom gaúcho apreciava ambrosia e sagu, em verdade era um “formigão”. 
Este homem que gostava de samba de raiz, chegava na parada 15A da região da periferia, zona Leste, na Lomba do Pinheiro, descia e entrava mato adentro discutindo as questões da negritude. E entre os anos de 1983 e 1986, começou a desenvolver as primeiras idéias a fim de criar o Angola Janga, uma pequena Angola no Rio Grande do Sul, a entidade política, social e pedagógica Angola Janga, onde ocupou por três vezes o cargo equivalente a presidente, o de Secretário Executivo.
Além de tudo realizou as seguintes ações políticas e ocupou cargos no movimento social: fundador do Movimento Negro Unificado do RS (MNU/RS) (1978); fundador da Setorial de Combate ao Racismo do PT/RS; Suplente do Coletivo Nacional da Secretaria de Combate ao Racismo do PT; fundador e coordenador das Relações Externas do Núcleo dos Negros e Negras do PT de Porto Alegre; Articulador da criação do GTA-PT (Grupo de Trabalho Antirracismo no PT); Assessor de Políticas Públicas para o Povo Negro pela Coordenação de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de Porto Alegre no período de 1996 a 2001; Coordenador do FEAN - Fórum de Articulação das Entidades Negras do RS (1992 a 2000); Foi Fundador da CONEN; Membro do Conselho Fiscal do Instituto Hamilton Cardoso (órgão ligado a CONEN); Conselheiro Estadual do CODENE - Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do RS; Membro do Grupo de Trabalho que elaborou o anteprojeto da Lei Municipal nº 6986, que institui a Semana de Consciência Negra em Porto Alegre no ano de 1981.
É fundador do CRAB (Centro de Referência Afro-Brasileiro), onde ocupou o cargo de Coordenador do Grupo Impulsor do Centro.  Sobre o CRAB declarou o seguinte: “O CRAB busca através de uma leitura e reflexão crítica o resgate da verdadeira história do povo negro. Contextualizando o presente em termos sócio – político – econômico e cultural, projetando o futuro numa perspectiva de construção de uma nova sociedade”. Para José Alves Bitencourt (Lua), “Se não lutar, não muda!”. E foi está sua força e persistência que fez nascer o CRAB, depois o Museu de Percurso do Negro de Porto Alegre, que deixou para a posteridade a monumentalização dos percursos dos africanos e de seus descendentes em Porto Alegre, que hoje é cada vez mais uma Cidade Negra.


Antônio Matos
Líder comunitário no Campo da Tuca, Porto Alegre, RS
Militante da causa da igualdade racial

Flávio E. N. Teixeira 
 Engenheiro Eletrico
Coordenador Executivo do GT Angola Janga em 2010
Militante pela igualdade racial




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Batuque - uma religião afro-gaúcha

Iosvaldyr C. Bittencourt Jr
Jornalista e Antropólogo
Nas características do Batuque gaúcho há predominância de elementos jêje-nagô, cujos cânticos são efetuados em língua jêje-nagô, sendo mínima a presença dos espírita-kardecistas, de inspiração oriental e indígena. A modalidade ritual de “linha-cruzada”, denominada assim porque muitos de seus integrantes tiveram sua iniciação na Umbanda e, mais tarde, foram “cruzando-se” ao iniciarem-se no Batuque, ou efetivando algum grau de vinculação. “Cruzar o exu” é dar a ele um tratamento ritual análogo àquele que é dado a um Orixá, seres que na maioria das casas são cuidadosamente separados.
O Batuque caracteriza-se por sua forte e efetiva herança tradicional africana, que se mantém, apesar da longa convivência com uma sociedade ocidentalizada, além de enfrentar em seus primeiros anos a repressão aberta ou velada que, sob certa forma, ainda hoje continua a sofrer com a opressão cultural, o preconceito racial e discriminação social. Ao referirmos sobre os termos “casas” ou “terreiras”, estaremos tratando de duas modalidades de cultos ao mesmo tempo, os quais são enquadrados aqui em dois tipos diferentes sem, contudo, excluírem-se mutuamente: Os de Linha Cruzada são aqueles em que se toca nas várias linhas da Umbanda como, por exemplo, nas linhas de Caboclo, Preto-Velho, Preto-Velho e Ciganos, etc., e na linha Exu.
Os de Nação (Batuque ou desenvolvido por meio da liturgia do Candomblé), em cujas Casas de Nação são, também, usualmente chamadas de Casas de Religião. As Casas de Religião ora se apresentam como Casas de Nação ou como Terreiras.

De um modo geral, estudos significativos sobre o Batuque no Rio Grande do Sul aparecem, desde 1940: abordagens históricas, sociológicas, antropológicas e psicanalíticas somam-se relatos etnográficos de autores variados. Aos registros etnográficos que se tem sobre aspectos mais gerais da religião, como os de cronistas de fins do século XIX, e as observações de cientistas sociais, como Melville Herskovits (1948) e Roger Bastide (1959) e, mais recentemente, de Norton Corrêa (1988; 1994), Ari Oro (1994; 1999; 2002), José dos Anjos (1993; 2006), Francisco Almeida (2002), entre outros sob um enfoque antropológico.
Por Batuque compreendemos, no Brasil, uma das várias religiões que, apresentando claramente elementos de origem africana, foram classificadas por meio do adjetivo composto “afro-brasileiras”, com todos os inconvenientes e imprecisões que isso possa ter. Entende-se, no geral, por Batuque “um termo genérico aplicado aos ritmos produzidos à base de percussão por freqüentadores de cultos cujos elementos mitológicos, axiológicos, lingüísticos e ritualísticos são de origem africana” (ORO, 2002:352).
Segundo hipóteses fundadas em torno do surgimento do Batuque no Estado do Rio Grande do Sul, o antropólogo Norton Corrêa salientaria que aparentemente, no início do século XIX, teria se constituído estas manifestações religiosas, ao menos tal qual as conhecemos hoje, possivelmente entre os anos de 1833 e 1859 (1988:69). Também o antropólogo Ari Pedro Oro, em um artigo mais recente aponta, baseado em fontes históricas, que “tudo indica que os primeiros terreiros foram fundados justamente na região de Rio Grande e Pelotas” (ORO, 2002:349). Tem-se notícias, em jornais desta região, de matérias sobre cultos de origem africana datadas de abril de 1878 (Jornal do Comércio, Pelotas). Já em Porto Alegre, as notícias relativas ao Batuque, datam da segunda metade do século XIX, quando supostamente teria se dado a migração de escravos e ex-escravos da região de Pelotas e Rio Grande para a Capital (ORO, 2002: 349). Ambos os autores, que são referências indispensáveis nos estudos antropológicos sobre o Batuque e demais religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul e países do Prata (Argentina, Uruguai e Paraguai), apontam que o Batuque


[...] é uma religião que cultua doze orixás e divide-se em lados ou nações, tem sido, historicamente, as mais importantes: Oyó, tida como a mais antiga do estado, mas tendo hoje aqui poucos representantes e divulgadores: Jêje, cujo maior divulgador no Rio Grande do Sul foi o Príncipe Custódio; Ijexá, Cabinda e Nagô, são outras nações de destaque neste estado. Nota-se que o Keto esteve historicamente ausente no RS, vindo somente nos últimos anos a se integrar por meio do candomblé (ORO, 2002:  352).

NAÇÕES:

NAÇÃO OYO — Caracteriza-se principalmente pela ordem das rezas: primeiro, tocava-se para todos os orixás masculinos, depois para os femininos, e finalizava-se com Oyá, Xangô e Oxalá (Oyá e Xangô no final, representando o rei e a rainha de Oyó) e dizem, também, que ao final da cerimônia, os orixás carregavam a cabeça dos animais a eles sacrificados.
CABINDA — Embora por muitos anos consideraram haver uma ligação com a cultura Banto, ela não cultua nkisis (divindades Banto), mas sim Orixás Yorùbá, os mesmos de todas as três raízes do Batuque gaúcho, com acréscimo de algumas divindades como o Bará (Bará Legba), Zina e a Oyá (Oyá Dirã, Oyá Timboá). O culto da Cabinda está ligada ao ritual do culto ao grande Aláàfìn Òyó que, por sua vez, está ligada diretamente ao culto dos Eguns, sabendo que o ritual de Egun teve início em Oyo. É comum encontrar do lado de fora da maioria dos templos da raiz Cabinda, o assentamento do Baru Aláàfìn, conhecido por Kamuká, que está ligado diretamente ao Igbalé (casa dos mortos). Desta forma, é a única vertente do Batuque gaúchol que conseguem manter os rituais de Ìbòrì e feitura, quando ocorre o procedimento de um Arissum/àsésé (ritual fúnebre), ou, quando é necessário, dar procedência à preparação de um Lailẹ̀mí (morto), criando assim uma forte ligação com os antepassados e os rituais aos Oríxás, sem que misturem os dois, pois esta é uma religião voltada exclusivamente à Orixá. A Cabinda é considerada uma raíz da Nação Batuque gaúcho, pois contém fatores que determinam uma ramificação, porém faltam elementos que caracterize uma nova nação dentro da própria nação afro-brasileira.

NAÇÃO JEJE — assim como a Cabinda adotou o panteão iorubá dos orixás, os mesmos são de Ijexá, sendo muito comum as casas de Jeje-Ijexá. Muitos sacerdotes da Nação Jeje do Batuque desconhecem a palavra Vodun, embora se tenham relatos de culto a algumas destas divindades, antigamente. Os descendentes de Pai Joãozinho do Bará (Esú By) são os que mantém firme as tradições desta nação, como o uso de agdavís em seus rituais (chamado "Jeje de pauzinhos"), o assentamento de Ogum semelhante ao do Vodun Gun no Daomé, e a existência de pessoas iniciadas para Dan e Sogbo. As cerimônias se iniciam com a parte Jeje (com cânticos no dialeto fongbe) e a dança em pares (simbolizando o par da criação Mawu-Lisa) e o toque com as "varinhas" e, depois, a parte iorubá, com as rezas tradicionais do Batuque.
NAÇÃO NAGÔ — tem uma certa semelhança com o Candomblé, tanto nas cerimônias como nas características dos Orixás. Seu panteão é mais numeroso e, em algumas casas, este chega ao número de 19 Divindades. Sua liturgia e dogmas se diferencia das demais nações, a exemplo do seu sistema de enterramento/funeral; seu culto à Ancestralidade; seus ritos iniciativos, culinárias, dentre outros. Seus adeptos costumam se vestir de branco e colocar pano de cabeça nas obrigações. Outra questão que a diferencia é no trato aos ritos iniciáticos. Este só acontece perante a manifestação sutil da divindade. Por fim, nesta nação não existe nenhum tipo de Tabu que proiba ao iniciado saber da presença de sua divindade, o que fez do Nagô uma nação dentro do Batuque, que utiliza-se de cargos, os mais corriqueiros (Ogan, Ekedi, Axogun, Pejigan, Yabasse, Yamoro, Babakekere, Yakekere). A fundamentação de Exu-Bará é realizada 3 dias antes da iniciação e, dificilmente, se assenta orixá adjunto. A liturgia Nagô segue preceitos parecidos com o da nação Oyó que, historicamente, na cidade de Pelotas contou com apoio de Vó Lúcia de Xangô, escrava, negra, vinda de Oyó (Nigéria).


Em geral, os fiéis do Batuque no Rio Grande do Sul classificam as Casas de Religião em cinco grandes nações oriundas, em tese, das diferentes origens africanas de seus fundadores. Há diferenças entre as Casas que se classificam em Nações distintas, mas também entre as que se classificam na mesma Nação, assim existem vários tipos de misturas e combinações entre as nações. Entretanto, da Nação Jeje emanam divindades, batidas, pontos de vista diferentes da Nação Cabinda, mas ambos podem ser conjugados em um terreiro em momentos diferentes (ANJOS, 2008, p.78).
              Cabe salientar e esclarecer que o Batuque não é um segmento do candomblé baiano, muito ao contrário, tem liturgia e fundamentos próprios, em nada semelhantes ao candomblé. Contudo, uma característica da lógica das diferenças na religiosidade africana, no Brasil, é de que as diversas Nações (Jeje, Ketu, Angola e outras) não são essências identitárias pertencentes a indivíduos, mas territórios simbólicos de intensidades diversas, passíveis de serem percorridos por multiplicidades de raças e de indivíduos (ANJOS, 2008, p.82). De acordo com Edgar Rodrigues Barbosa Neto, esse complexo fenômeno de coexistência entre lados que simultaneamente se aproximam e se afastam, e que José Carlos dos Anjos descreveu por meio da noção de “território da linha cruzada”, o qual, segundo ele, elide certas referências fusionais e unitárias implicadas em determinadas acepções do conceito de sincretismo (Anjos, 2006: 22), havia chamado a atenção de Bastide, levando-o à hipótese de um “sincretismo em mosaico”, que, no lugar da fusão, supõe “uma coexistência de objetos discordantes” (Bastide, 1974: 80, 143).


REFERÊNCIAS

ANJOS, José Carlos dosNo território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre : Editora da UFRGS/Fundação Cultural Palmares, 2006.

_______. A filosofia política da religiosidade afro-brasileira como patrimônio cultural brasileiro. Debates do Ner, Ano 9, n. 13, jan../jun., 2008, PP. 77-96.

BASTIDE, RogerAs Américas Negras: as civilizações africanas no Novo Mundo. São Paulo: Edusp, 1974. 
______. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1983.
______. “O encontro entre deuses africanos e espíritos indígenas”. In: O sagrado selvagem e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 218-235.
CORRÊA, Norton F. Os vivos, os mortos e os deuses: um estudo antropológico sobre o batuque do Rio Grande do Sul. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (UFRGS), 1988.
BARBOSA NETO, Edgar Rodrigues. “O batuque e a linha cruzada: variações sobre os sistemas etno-litúrgicos afro-brasileiros”. GT 23 Novos Modelos comparativos: investigações sobre coletivos afro-indígenas. 36º Econtro Anual da ANPOCS.
_____. “Panorama das Religiões Afro-Brasileiras do Rio Grande do Sul”. In: ORO, Ari Pedro (org.). As Religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1994, p. 9-46.
ORO, Ari Pedro (org.) As Religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Ufrgs, 1994.
_____. Axé Mercosul: As Religiões afro-brasileiras nos países do Prata. Petrópolis: Vozes, 1999.

_____. “Religiões Afro-Brasileiras do Rio Grande do Sul: Passado e Presente”. Estudos Afro-Asiáticos, vol. 24, n. 2, Rio de Janeiro, 2002, PP. 345-384.